quarta-feira, 28 de novembro de 2007

No olho do furacão, sob a mira do ufanismo

Reza a lenda que Corumbá, no coração do Pantanal Mato-grossense e do subcontinente sul-americano, teria sido amaldiçoada por ninguém menos que um generoso frade capuchinho, o Frei Mariano, que vivera o clímax da Guerra da Tríplice Aliança em solo pantaneiro e que no pós-guerra de 1870 se dedicara a cuidar de órfãos e viúvas, mas que, vítima da disputa entre a Igreja e a Maçonaria, acabara difamado e, à revelia, transferido ao interior de São Paulo, onde se suicidara mais tarde. A bizarra lenda em que alegóricas sandálias teriam sido enterradas para eternizar tal maldição – a representar outro linchamento moral, post-mortem, do sacerdote franciscano – foi difundida numa cartilha que circulou pelo então ainda próspero centro comercial na primeira metade do século 20, como uma infame tentativa de justificar o anacronismo e a miopia das elites diante da falta de estratégias para a superação da crise iminente do maior pólo comercial do interior da América do Sul.
Quase sessenta anos depois, transcorrido um período de indisfarçável (des)compasso de espera entre os discursos ufano-desenvolvimentistas reciclados de paladinos efêmeros e as teses realistas de estudiosos comprometidos tão-somente com a honestidade científica aliados às demandas corajosas de movimentos sócio-ambientais sinceros, o que resta de cosmopolitismo e altivez do outrora porto-livre do coração da América do Sul converteu-se em palco de uma aparvalhada batalha em que autoproclamados arautos, de diatribes conspiratórias e de maniqueísmo incorrigível, insistem em arranjar bodes expiatórios para tamanha iniqüidade histórica – desta vez parodiando o discurso dos caçadores de comunistas do pós-guerra de 1945 com aviltantes bravatas de que dirigentes e voluntários do terceiro setor (organizações não governamentais) estariam conspirando contra o desenvolvimento do coração do Pantanal e atentando contra a soberania nacional. Coincidentemente, nesse meio-tempo, ganhou destaque a lenda das sandálias do Frei Mariano, quer como peça de teatro, quer como samba-enredo de entidade carnavalesca, mas num contexto em que se evidencia o leviano propósito de deslegitimar qualquer opinião diferente, divergente ou antagônica à proposta requentada dos tempos getulistas de pólo siderúrgico, ora com o eufemismo de Zona de Processamento de Exportações, ora com o rótulo de Pólo Gás-químico ou Minero-siderúrgico.
Como membro de uma ONG sócio-ambiental de perfil comunitário fundada e consolidada no olho do furacão, sob a mira do ufanismo, confesso ter ficado preocupado com a integridade física dos generosos e corajosos estudiosos que foram alvo de uma ensandecida campanha difamatória, precisamente no ápice dessa atabalhoada verborragia intolerante e desprezível dos que, na falta de argumentos razoáveis e racionais, partiram para a prática fascista da negação do contraditório, de fazer inveja aos mais recalcitrantes títeres da virulência obscurantista que envergonha a espécie humana. Graças à postura irretocável dos representantes locais do Ministério Público Estadual, da Procuradoria da República, da Polícia Federal e do Poder Judiciário, de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e de jornalistas éticos dignos do maior reconhecimento público (cujos nomes são preservados para não torná-los alvo de retaliações), dentro e fora do estado de Mato Grosso do Sul, foi possível assegurar um mínimo de respeito pela dignidade humana a esses cidadãos da maior autoridade moral e técnico-científica. E, justiça seja feita, meu reconhecimento sincero a um diminuto número de empresários locais de grande espírito público, alguns dos quais ainda sem ter qualquer mandato representativo de entidade classista para resguardar-se na potestade inerente a uma função pública.
Por certo, a experiência e a maturidade cidadã de muitos desses pesquisadores foi fundamental para transpor as provocações próprias dos tempos odiosos dos regimes de arbítrio que assolaram países latino-americanos, de triste memória, quando uma caricata mobilização ganhou proporções inusitadas no emblemático Dia Internacional do Trabalhador, chegando à linha divisória internacional entre o Brasil e a Bolívia, em Corumbá. É, no mínimo, bizarro o fato de representantes de órgãos oficiosos não dissimularem – e ostentarem até – o apoio institucional a tal façanha, num gesto nada amigável ante um governo constitucional e democraticamente eleito da nação irmã, por conta de uma decisão governamental que nada tem a ver com as demandas locais por desenvolvimento. Indiscutivelmente, o oportunismo de certos agentes políticos dos dois lados da mesma fronteira serviu de combustível para ações incendiárias e admoestações extemporâneas que confirmam a mesma origem antidemocrática, partilhada, aliás, num mesmo período histórico, ainda perceptível.
Órfãos ou viúvos de correntes cinicamente nazi-fascistas que sobreviveram ao segundo quartel do século 20, os paladinos de causas inconfessáveis (muitas vezes vinculados ao crime organizado) travestidos de porta-vozes da livre-iniciativa e do mercado livre nos nada generosos tempos de globalização adotaram um discurso postiço, nada convincente, de arautos da justiça social no exuberante, mas excludente, coração do Pantanal. Embora todos tivessem o pleno direito de lutar por interesses legítimos, diga-se de passagem, a arrogância e a leviandade com que tentaram impor seus pontos de vista – usando truculência explícita e poder econômico sobre os que racionalmente procuram alternativas exeqüíveis para um sólido e consistente desenvolvimento sustentável no contexto do que é preconizado pela Carta da Terra e pela Agenda 21 – empobrecem e invalidam o necessário desenvolvimento do processo civilizatório da humanidade assentada neste singular território de riquezas incomensuráveis, desde sempre, dos dois lados desta fronteira de povos irmãos.
A despeito das vis agressões e das campanhas difamatórias, o terceiro setor tem dado eloqüentes provas de generosidade e compromisso com a vida em todos os quadrantes do planeta, seja na defesa dos recursos naturais, na afirmação do protagonismo cidadão, na inclusão social ou mesmo na preservação da identidade cultural ou do Estado de direito. Senão, vejamos: mesmo com todas as tentativas levianas de deslegitimar suas ações pioneiras, não foram senão as ONGs as que corajosamente não só assumiram para valer como implementaram as iniciativas de interlocução que ganharam a denominação de Plataforma de Diálogo – fórum pelo qual membros do terceiro setor vêm pactuando de forma inovadora e sensata com o segundo setor no sincero intuito de fazer avançar os mecanismos institucionais de proteção ambiental causado pelo delicado processo de licenciamento de empreendimentos industriais em Corumbá. Por outro lado, são as ONGs as que decididamente têm chegado onde o Estado ainda não assumiu suas prerrogativas, preservando contingentes humanos do assédio de quadrilhas organizadas que se valem da ausência institucional para ampliar seus tentáculos e estender suas teias delinqüentes sobre populações inteiras, que viram reféns dos criminosos e dos servidores públicos corruptos, de todos os poderes e escalões, cooptados por eles.
No dizer do inigualável sociólogo brasileiro Herbert de Souza, o saudoso Betinho, fundador do pioneiro Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Econômicas (Ibase), “não basta dar um prato de feijão; é preciso ser cidadão para conferir cidadania aos 32 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza”. Pois, então, nessa linha de raciocínio, podemos dizer que não basta bradar pela defesa do desenvolvimento da região, mas é fundamental que esse desenvolvimento seja construído sob o império da lei, à luz da ética e da solidariedade universal e com a participação democrática de todos os diferentes atores sociais, para que, ao lado da geração de emprego, a qualidade de vida represente, de fato, o progresso que a humanidade almeja, sob pena de que, em duas ou três décadas, sobre, mais uma vez para a população local, a herança maldita de iniciativas feitas para o enriquecimento de alguns que sequer ficarão para sentir as conseqüências dos estragos deixados (as voçorocas expostas, os rios contaminados, a vegetação nativa degradada e a fauna dizimada) para as próximas gerações de pantaneirinhos que absolutamente não têm culpa de que seus pais tenham caído mais uma vez na cantilena esperta das sereias de águas turvas e solos contaminados...
Schabib Hany (*)

* É fundador e membro da coordenação-executiva da Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente (OCCA), entidade sócio-ambiental sediada no coração do Pantanal (Corumbá, MS), além de membro da coordenação colegiada do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD).

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Márcio Nunes Pereira, sempre na memória

Márcio Nunes Pereira, sempre na memória
Dez anos atrás, no fatídico 2 de agosto de 1997, o combativo jornalista Márcio Nunes Pereira, aos 42 anos, se eternizava, deixando uma grande lacuna no meio jornalístico, no seio familiar, no círculo de amigos das mais diferentes camadas e correntes de pensamento, e, sobretudo, no cotidiano da cidadania local que o tempo não foi capaz de mitigar.
Depois de ter resistido estoicamente a uma enfermidade só comparável ao mal que (des)graça a nossa tenra democracia –- a impunidade, contra a qual ele corajosamente lutou –-, encantou-se o peculiar estilo de fazer jornalismo, sem dar trégua aos poderosos, às elites corruptas e aos mercenários da mídia chapa-branca que amesquinham esse honrado ofício e amordaçam o sagrado direito à informação da cidadania e a formação da opinião pública.
Mais que um sincero e admirável Amigo (desses com “a” maiúsculo), Márcio foi um generoso e incomum repórter de privilegiado talento, ao extremo de não priorizar sua prerrogativa de diretor para poder-se dedicar de corpo e alma ao ofício de repórter ousado e incansável.
Perplexos, inúmeras vezes seus amigos puderam testemunhar sua nítida opção pelo corajoso jornalismo investigativo, a despeito de ameaças veladas ou explícitas, ora contra as finanças do inimitável Diário de Corumbá –- com o lema Um jornal se mede pelas verdades que diz –- ou, também, contra a sua querida família (a leal esposa Margareth e o carinhoso Paulinho, que até hoje tentam se refazer da perda desse grande pai e companheiro).
Sem lugar a exageros, depois do silêncio determinado pela Vida à sua singular carreira –- aliás, bem-sucedida –-, a imprensa sul-mato-grossense perdeu a alma e o faro do repórter, que nestes alvissareiros tempos – de plenas liberdades e de fácil acesso à tecnologia de ponta – fazem muita falta à opinião pública, à cidadania, até pela monotonia da cobertura, numa unanimidade de fazer jus à sentença do não menos ousado dramaturgo Nelson Rodrigues.
No dia em que transcorre o décimo aniversário de seu prematuro encantamento, mais que uma justa homenagem, tomamos a liberdade de deixar para as novas gerações este despretensioso testemunho de anônimo mas partícipe observador da inesgotável capacidade de o saudoso Márcio Nunes Pereira inovar o jornalismo combativo com a criatividade e a irreverência das almas pródigas que têm consciência de sua condição de peregrinas, razão pela qual não caem nas armadilhas da ganância ou da desfaçatez.
Como nos sábios versos do saudoso Sérgio Bittencourt a homenagear Jacó do Bandolim, naquela mesa está faltando ele, e a saudade dele está doendo em... todos os que acreditam no papel informativo e formativo do jornalismo-verdade, forjado na têmpera e no caráter de jovens eternizados que não abandonaram o sagrado ofício em nome do leite das crianças.
Até sempre, Márcio Nunes Pereira, sempre na memória!
Ahmad Schabib Hany

domingo, 20 de maio de 2007

Bem-vindo(a) a Corumbá, coração do Pantanal e da América do Sul!

O povo hospitaleiro de Corumbá vem lhe dar boas-vindas, caro(a) visitante, e lhe desejar uma estada memorável no coração do Pantanal e da América Latina, sede do Festival da América do Sul, do sol da solidariedade e do sal do Mar de Xaraés.
Este povo –- que traz em seu nome a raiz do coração acolhedor e das cores da vida -– vem lhe apresentar o que não encontra semelhança no resto do mundo: o Pantanal Mato-grossense, a história dos povos originários e dos pioneiros colonizadores, a rica cultura pantaneira e a proteção da população infanto-juvenil, cuja dignidade tornou-se questão de honra para todos.
Terra da etnia Guató (índios canoeiros do Pantanal), Corumbá foi fundada em 1778, durante o avanço lusitano sobre terras castelhanas, com o intuito de abastecer o então recém-construído Forte Coimbra. O primeiro nome foi Santa Cruz de Albuquerque, em homenagem ao seu fundador, Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, capitão-general da capitania de Mato Grosso e Cuiabá. No início do século 19, depois de um incêndio que destruiu a antiga vila de Albuquerque, foi rebatizada com o nome de Vila de Santa Cruz de Corumbá, acredita-se por conta da abundância de aroeira (“curupá” em tupi-guarani) na região. O local da fundação hoje corresponde ao distrito de Albuquerque, distante 50 quilômetros do centro da cidade, cuja população predominante é de ribeirinhos.
É dos mais antigos centros urbanos de Mato Grosso (o estado original), tendo sido entreposto comercial de grande importância entre 1870 e 1950, quando a implantação da ferrovia Noroeste do Brasil causou a mudança do eixo comercial para Campo Grande. Mas sua vocação para a integração entre os povos lhe deu novo alento com o funcionamento da ferrovia para Santa Cruz (Bolívia), no final da década de 1950. Graças ao comércio com os países andinos, foi o principal porto exportador do Centro-Oeste, tendo registrado a média diária de um milhão e meio de dólares em mercadorias exportadas em meados da década de 1980.
Situada em pleno patrimônio natural de características únicas no Planeta -– o Pantanal das águas abundantes e da vida em diversidade -–, Corumbá é detentora de um patrimônio histórico singular – representado pelo Casario do Porto, em fase de restauração – e, sobretudo, de um patrimônio ainda mais significativo – o seu povo, de culturas heterogêneas, cosmopolitas e resultantes da intensa miscigenação.
Na década de 1970, turistas europeus que faziam a “rota dos Incas” (rumo à Bolívia e ao Peru) desvendaram as maravilhas naturais e culturais do Pantanal de Corumbá. Além de fazer passeios de barco pelo Rio Paraguai e de picape à Nhecolândia, os visitantes ficavam alguns dias para conhecer o Museu do Pantanal (hoje na Casa de Cultura Luiz de Albuquerque, o ILA), a cozinha pantaneira, a Casa do Massa-Barro, a Cacimba da Saúde, o Casario do Porto, a Esplanada da Noroeste, Ladário e Porto Suárez. Mais tarde o turismo de pesca veio se sobrepor ao turismo-aventura, tendência que hoje volta a se reverter em nossa região.
Para assegurar proteção especial às crianças e adolescentes vítimas da exploração sexual, desde 1997 vem funcionando em Corumbá a Comissão Municipal de Combate à Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes (Comcexcor), que ganhou autonomia graças à adesão da sociedade local, ao Programa Sentinela e ao Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual contra a População Infanto-juvenil em Território Brasileiro (PAIR), do governo federal.
Sinta-se em casa. O Pantanal e seu hospitaleiro povo o(a) recebem de coração e braços abertos para que conheça e os ajude a cuidar de suas riquezas: a natureza exuberante, a cultura contagiante, a história pujante e a gente cativante. Por isso, ajude na proteção das novas gerações, combatendo a exploração sexual de crianças e adolescentes, o seu patrimônio mais caro.
Exploração e abuso são formas de violência sexual e você pode ajudar a combater esse crime. Não faça parte desse esquema.
Exploração sexual – É a utilização de crianças e adolescentes com fins comerciais e de lucro. Acontece quando meninos e meninas são induzidos a manter relações sexuais com adultos ou adolescentes mais velhos, quando são usados para produção de material pornográfico ou levados para outras cidades, estado ou países com propósitos sexuais.
Abuso sexual – É a utilização de crianças e adolescentes, geralmente por alguém próximo, podendo ser ou não da família, que se aproveita da relação de poder e confiança sobre meninos e meninas para obter favores sexuais. Pode ocorrer com ou sem violência física, mas a violência psicológica está sempre presente.
Não se omita, denuncie ao 0800 647 1323 (COMCEX/MS) ou ao Conselho Tutelar do município.
(Texto produzido gratuitamente por Schabib Hany, da OCCA, para a COMCEXCOR, em agosto de 2004, quando da primeira edição do Festival América do Sul)
Realização: Comissão Municipal de Combate à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes de Corumbá –- COMCEXCOR
Apoio: Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente –- OCCA
Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário -- FORUMCORLAD
PROGRAMA SENTINELA
Prefeitura Municipal de Corumbá –- Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social –- SEMTAS

domingo, 13 de maio de 2007

Mais que conservar o meio ambiente, trata-se da preservar o Estado de Direito

Uma sociedade que se pretende democrática, baseada no princípio do convívio saudável entre a diversidade de interesses de seus inúmeros segmentos --muitas vezes antagônicos, mas nem por isso ilegítimos-–, não pode abrir mão da estrutura jurídica do Estado de Direito, o qual, aliás, foi construído ao longo dos últimos séculos pelas sucessivas gerações que antecederam as contemporâneas.
Nesse sentido, a partir do Renascimento (processo histórico das sociedades ocidentais pelo qual se retomaram as significativas contribuições oriundas da Antigüidade Clássica, ao romper com o obscurantismo medieval), importantes pensadores do Ocidente resgataram o humanismo e seus valores universais –-sobretudo o legado da convivência harmoniosa entre os contrários, pondo em xeque a intolerância feudal, que ainda teima em nortear os rumos da humanidade.
A despeito da expansão colonialista protagonizada pelas coroas portuguesa, espanhola, inglesa, francesa, holandesa e austro-húngara, é no auge do Iluminismo que se consolidam as idéias que dão as bases conceituais da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em fins do século 18 (que trata dos direitos individuais, a primeira dimensão). E num processo evolutivo são acrescidas importantes contribuições, nos séculos 19 e 20 –-quando são concebidos os direitos coletivos, de segunda dimensão-–, que se transformam num marco histórico em 1948, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) aprova, em sua Assembléia-Geral, a Carta dos Direitos Humanos –-a qual ganha maior dimensão com a inclusão de novos conceitos relativos aos direitos dos povos e da diversidade biológica e cultural, compiladas na Carta da Terra, em 1992, durante a realização, no Rio de Janeiro, da Cúpula da Terra, mais conhecida como Eco 92, cujo documento final ficou traduzido na Agenda 21.
Mais que mero protocolo de intenções, a Agenda 21 é um conjunto de novos conceitos e ações recomendados a todos os países-membro da ONU, a qual, no dizer do sociólogo americano Ignacy Sachs, em seu livro Estratégias de transição para o século XXI: desenvolvimento e meio ambiente (Editora Studio Nobel, São Paulo, 1993), "não foi um fim em si mesma; em vez disso, deve ser encarada como o início de um longo processo a ser percorrido mediante esforços e batalhas dos atores do desenvolvimento". Cabe, portanto, aos respectivos governos nacionais, regionais e locais introduzir em suas políticas públicas novos parâmetros de desenvolvimento, levando em conta as cinco dimensões de sustentabilidade –-social, econômica, ecológica, espacial e cultural.
No entanto, a partir da celebração do chamado Consenso de Washington, em 1989 –-quando do início do desmoronamento do bloco soviético-–, os sete países mais ricos do mundo capitalista decidiram desenvolver uma estratégia ousada na afirmação de sua hegemonia econômica, adotando o neoliberalismo em escala global –-a chamada "globalização"-–, as sociedades contemporâneas passaram a viver um dilema: a subordinação de sua estrutura jurídica às leis de mercado. Em outras palavras, na América Latina o Estado de Direito passou a ser corroído, de um lado, pelos cartéis e oligopólios transnacionais, e por outro, pelas quadrilhas do crime organizado, pois o recém-implantado regime democrático se revelou frágil perante as amplas camadas sociais nas garantias de direitos sociais e trabalhistas e no enfrentamento à expansão da miséria e do desemprego.
Assim, o ruidoso embate que tem como epicentro o projeto de implantação de indústria pesada no município de Corumbá (MS), no coração do Pantanal Mato-grossense, remete os cidadãos comprometidos com os reais interesses da sociedade a uma oportuna reflexão: detentor de uma extraordinária legislação ambiental, o Estado brasileiro pode transigir da legalidade em nome da geração de emprego e renda para uma população residente numa singular região do Planeta, cujos recursos naturais não renováveis têm um valor inestimável para toda a humanidade?
Qual o real custo-benefício sócio-ambiental dos projetos alardeados para a região, levando em consideração que o mercado impõe condições cada vez mais voláteis a toda iniciativa econômica, sujeita à própria sorte (a exemplo da crise que afeta a sojicultura, a pecuária e a avicultura, carros-chefe da economia do estado de Mato Grosso do Sul, vitimados pela especulação mercantil dos últimos meses)?
E a garantia de sustentabilidade desses megaprojetos, os quais envolvem elevados investimentos, em sua quase totalidade financiados por instituições públicas, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ou por instituições financeiras multilaterais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) ou o Banco Mundial (BIRD), dos quais o Estado brasileiro é membro e cujo aval é requerido nos casos de sediar projetos dessa magnitude?
Há de se observar também que, antes de se cair no discurso maniqueísta (do "bem" contra o "mal"), é preciso reunir dados jurídico-institucionais para compor o cenário local para a introdução de novos projetos de desenvolvimento, nos parâmetros do século 21, com ênfase às cinco dimensões do desenvolvimento sustentável, bem como a necessária observância ao Estatuto da Cidade, pelo qual toda cidade com mais de 50 mil habitantes é obrigada a construir o respectivo Plano Diretor do Município, além do que a administração estadual não pode deixar de realizar o Macrozoneamento Ecológico-econômico, nos termos da legislação pós-Agenda 21, como medidas preliminares para adoção de novos modelos de desenvolvimento.
Não é demais recordar que as três dimensões dos Direitos Humanos (direitos individuais, sociais e econômicos e de solidariedade e meio ambiente) são complementares, embora apresentem, no cotidiano das sociedades hodiernas, aparentes conflitos entre os direitos individuais, coletivos e de solidariedade. Na realidade, a omissão do Estado, enquanto ente responsável pela aplicação estrita dos referidos direitos, induz os incautos a essa aparência, explorada de parte a parte pelos lados em conflito. Mais que a conservação da natureza, a preservação do Estado de Direito, construído nas últimas décadas com muito custo (inclusive com perda de vidas humanas) em toda a América Latina, implica na vigência do império da lei, sem o que a barbárie se instala no seio da sociedade, para o deleite das organizações criminosas que agem, inclusive, nas atividades políticas e econômicas, usando e abusando da fragilidade do tecido social, corroído por suas mazelas.
Ahmad Schabib Hany -- fundador da Organização de Cidadania, Cultura e Amtiente (OCCA) e membro da coordenação do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD)

Comunicação, instrumento articulador do terceiro setor

Sem corrermos o risco de cometer qualquer exagero, podemos dizer que a comunicação está para o terceiro setor como o oxigênio para os seres aeróbios. E temos a história para referendar o que, por outro lado, parece óbvio demais –-sem nunca, no entanto, termos conseguido atingir a contento em nossa prática diária.
Com base em nossa experiência de organização localizada nos recônditos do extenso território brasileiro, em plena região pantaneira (onde o pioneirismo se confunde com o abandono e o coronelismo, que reluta em dar lugar aos paradigmas do século 21), não hesitamos em reiterar que a comunicação, ao lado do conhecimento, são os instrumentos de afirmação da cidadania e daquilo que passou a se chamar de empoderamento, ao gosto da nova inteligentsia neoliberal.
A história de nossas comunidades (ribeirinhos, indígenas, caboclos, mestiços e bugres) é, aliás, a história da ausência de comunicação. Ou melhor, da ausência de um fluxo de informações capaz de proporcionar o protagonismo cidadão do qual as sociedades tradicionais se ressentem desde há muito, como herança do processo colonial, de triste memória.
Assim, os detentores (ou usurpadores) do poder sempre se serviram do controle da comunicação para assegurar a sua perpetuação no poder. Foi assim mais recentemente, quando da luta contra a ditadura, a consolidação das novas elites políticas pretensamente denominadas de democráticas, mas que nada devem na, digamos, arte da sonegação de informações aos fantoches do regime de arbítrio, com os quais, em verdade, estabeleceram uma relação promíscua, a despeito das alegadas diferenças de ordem ideológica.
Mas como o terceiro setor, então, poderia dar as balizas de um novo conceito de comunicação, a se contrapor com o monopólio da informação do poder provinciano e truculento em nossas comunidades, controladas a ferro e fogo pelo baronato caquético e anacrônico, que apenas sobrevive pela falta de vontade política dos setores da política precocemente acovardados?
Esse é o grande desafio que temos diante de nós. Ou ousamos romper as amarras de um passado encharcado de sangue e de opressão ao longo de nossa tacanha história de ocupação, ou sucumbimos definitivamente, como aqueles que nos antecederam, em nome de uma Nova República ou de um Brasil Novo. Para isso, nós mesmos temos de fazer uma grande transformação em nossa práxis: deixarmos de ver nosso parceiro como concorrente, dentro da lógica abismal de mercado, e passarmos a praticar a fraternal postura solidária que o terceiro setor foi abandonando à medida que os conceitos mercadológicos contaminaram seu horizonte.
Sem drama e qualquer exagero, o maior gargalo na comunicação entre nós e com os demais segmentos sociais é o medo de perdermos o hipotético controle de algo que, em verdade, nunca tivemos: o poder. Como exemplo eloqüente temos a rica experiência de mobilização daquilo que acabou ganhando o pomposo nome de controle social das políticas públicas, e que para os veteranos cidadãos dos movimentos sociais nada mais é que a utópica democracia participativa. Decorridos aproximadamente dez anos da implantação dos conselhos paritários e comitês gestores e de monitoramento, corremos hoje o risco de termos criado uma casta de conselheiros, cidadãos comuns que crêem candidamente que detêm o poder por se sentar em torno da mesa do poder. Armados de uma conduta muitas vezes excludente e de uma terminologia hermética, aqueles que deveriam ser nossos representantes acabam quase sempre se transformando em despachantes de interesses corporativos, bem distantes dos legítimos pleitos dos setores organizados da sociedade.
Mato Grosso do Sul, mesmo na condição de estado periférico, é pródigo no pioneirismo das tentativas bem-sucedidas do protagonismo cidadão, as quais, contudo, vêm correndo risco iminente do amesquinhamento, por conta do atavismo coronelista. Governado pelo Partido dos Trabalhadores desde 1999 (inicialmente numa coalizão que incluía partidos de esquerda, e que a partir de 2002 estreitou sua base política às relações do governador Zeca do PT com os velhos caciques da política estadual), o estado que detém a maior superfície territorial do Pantanal é atualmente caudatário de conchavos políticos, fato que põe à prova as importantes conquistas cidadãs no campo da institucionalização da participação pública na formulação e acompanhamento das políticas públicas –aquilo que os constituintes de 1988 chamaram de controle social (também conhecido como controle público ou controle cidadão).
Quer sejam os conselhos estaduais de políticas públicas sociais (como de saúde, de assistência social e dos direitos da criança e do adolescente), os de políticas públicas de desenvolvimento (como os conselhos regionais de desenvolvimento) ou os comitês das políticas públicas ambientais (gestores ou de monitoramento), para cuja legitimação o terceiro setor teve um papel estratégico inquestionável, todos eles hoje se encontrar num curioso dilema, produto sobretudo da ausência de comunicação (ou melhor, de um necessário fluxo de informações) capaz de fomentar o tão sonhado protagonismo cidadão. Resultado: reféns da baixa resolutividade de seus mandatos nos conselhos ou comitês, seus membros mais ousados tentam criar mecanismos que lhes assegurem um inimaginável direito prioritário para sua recondução quase automática, quando não defendem abertamente a prorrogação de mandato.
Os anos de 2002 e 2003 estão se caracterizando por serem os mais reveladores das iniciativas disso que poderá se transformar na mais nova corporação, que começa a querer substituir as autênticas mobilizações dos fóruns legítimos que, como plenária maior, os constituíram e os legitimaram. Dois conselhos estaduais, por exemplo, criaram verdadeiras aberrações (em afronta à legislação estadual, inclusive), como a de excluir os representantes de entidades que não tivessem “âmbito estadual”, no afã espúrio de cercear a participação de membros da sociedade civil sul-mato-grossense oriundos dos mais diferentes quadrantes de um estado que tem as dimensões do território da Bolívia ou do Paraguai, países com os quais, aliás, faz divisa. Não é outro, pois, o intuito deste despretensioso testemunho que o de provocar uma reflexão coletiva sincera sobre o papel da comunicação para a efetivação do controle social necessário: em vez de nos fecharmos nas redomas do poder ilusório e ficarmos reféns de articulações equivocadas, é hora de que, como atuais representantes do terceiro setor em nossas regiões, retomemos a iniciativa das mobilizações para, com total transparência e fidalguia, resgatarmos o histórico papel das transformações represadas ao longo de séculos de conjurações frustradas, inconfidências e traições políticas.
Ahmad Schabib Hany -- fundador da Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente (OCCA) e membro da secretaria-executiva do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD)

sábado, 12 de maio de 2007

Compromisso com a vida

Nascida da iniciativa local de pautar as discussões em defesa de um novo modelo de desenvolvimento, em novembro de 2000, durante a realização, em Corumbá (MS), do Terceiro Simpósio sobre Recursos Naturais e Sócio-Econômicos do Pantanal, a OCCA -–Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente–- foi fundada em 1º de março de 2001, na sede do Sindicato dos Trabalhadores Fluviais de Corumbá e Ladário, por dezenas de pessoas oriundas de diferentes segmentos sociais, entre as quais pesquisadores, sindicalistas, estudantes, professores, ferroviários, aquaviários, artistas, profissionais liberais e descendentes da etnia guató, em sua grande maioria engajados em movimentos sociais, culturais e ambientais, predominantemente remanescentes da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, inspirada pelo sociólogo Herbert de Souza.
A despeito de sua fundação recente, a OCCA é responsável pela articulação de diversos setores da sociedade civil nos municípios de Corumbá e Ladário (fronteira sul-mato-grossense com a Bolívia), bem como dos contatos com as localidades de Puerto Suárez e Puerto Quijarro (povoados bolivianos colindantes com o estado de Mato Grosso do Sul). No curto período de existência jurídica, foi responsável pela realização, em fins de junho de 2001, de um importante evento em que foram discutidas as perspectivas de desenvolvimento da região (Fórum Corumbá Século 21 –- Compromissos para um desenvolvimento sustentável), numa parceria com o Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD), Pacto Pela Cidadania (Movimento Viva Corumbá), Aliança Rio Paraguai, Fórum de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Mato Grosso do Sul (FORMADS), Rede Brasil Sobre Instituições Financeiras Multilaterais e Coalizão Rios Vivos, conclave de que participaram representantes de organizações não governamentais do Brasil (Brasília, São Paulo, Cuiabá, Cáceres, Campo Grande, Miranda e Porto Murtinho), Bolívia, Paraguai, Argentina, Uruguai, Estados Unidos e Holanda.
Além disso, a OCCA tem desempenhado papel estratégico na participação pública para o monitoramento do Programa BID/Pantanal, Programa Monumenta, projeto Odebrecht Eco-Resorts Pantanal, projeto de reativação do Trem do Pantanal e revitalização da ferrovia Brasil–Bolívia, e particularmente na efetivação do controle social de políticas públicas sociais, ambientais e de desenvolvimento sustentável: campanha de combate à exploração e ao abuso sexual de crianças e adolescentes (em parceria com o Comitê Estadual pelo Fim do Abuso e da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes –-COMCEX/MS), campanhas de educação em saúde voltadas para a prevenção ao uso e abuso de drogas, prevenção a DST/HIV/Aids, reabilitação de ostomizados (em articulação com o Grupo de Apoio e Reabilitação da Pessoa Ostomizada –GARPO/MS) e não exclusão de pessoas atingidas pela hanseníase (em articulação com o Movimento de Reintegração de Pessoas Atingidas pela Hanseníase –MORHAN).
Desde agosto de 2001, a OCCA é membro da secretaria-executiva (coordenação colegiada) do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD), tendo sido membro, em Corumbá, do Conselho Municipal de Saúde, Conselho Gestor de Saúde do Hospital de Caridade, Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho Municipal de Assistência Social e do Conselho Municipal de Educação. Membro coordenador do grupo de trabalho que elaborou o anteprojeto de criação do Conselho Municipal de Cultura e Patrimônio Histórico, em tramitação na Câmara Municipal de Corumbá, também do grupo articulador do Comitê Municipal de Monitoramento de Arborização de Corumbá, bem como dos grupos de trabalho que elaboraram, em 2006, os anteprojetos de criação do Conselho Municipal de Educação, do Conselho Municipal da Cidade e do Conselho Municipal do Idoso, todos no município de Ladário (MS).
Em janeiro de 2002, numa memorável assembléia de rearticulação encabeçada por seus membros na capital do estado, a OCCA passou a ser membro da coordenação colegiada do Fórum Estadual de Entidades Não Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA/MS), tendo sido responsável pela ampliação da representatividade do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente de Mato Grosso do Sul (CEDCA/MS). A partir de maio de 2002, passou a integrar a coordenação colegiada do Fórum de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Mato Grosso do Sul (FORMADS/MS), desde agosto do mesmo ano passou a ser membro titular da coordenação colegiada da Rede Pantanal de ONGs e Movimentos Sociais e a partir de setembro do mesmo ano passou a integrar a equipe gestora do Fórum de Desenvolvimento Local, Integrado e Sustentável de Corumbá (Fórum de DLIS de Corumbá), sendo também membro da Câmara Técnica sobre o Rio Taquari no Comitê Estadual de Monitoramento do Programa Pantanal e do Conselho Gestor do Fundo Nacional de Direitos Difusos Lesados, vinculado ao Ministério da Justiça.
A partir de sua fundação, a OCCA vem fomentando o protagonismo cidadão dentro da região do Pantanal e em vários municípios do estado de Mato Grosso do Sul. Nesse sentido, contribuiu efetivamente para a ampliação da representatividade do segmento não governamental do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA/MS), do segmento dos usuários do sistema único de saúde do Conselho Estadual de Saúde (CES/MS), através do Fórum dos Usuários do Sistema Único de Mato Grosso do Sul (FUSUS/MS), e sobretudo na consolidação de entidades e espaços públicos como o Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Nova Andradina (FORNAN), Rede Pantanal de ONGs e Movimentos Sociais, Fórum de Desenvolvimento Local, Integrado e Sustentável (DELIS), Centro Padre Ernesto de Promoção Humana e Ambiental (CENPER), Sociedade Marlon Luiz de Combate à Violência Infanto-Juvenil (SOMARLUZ), Associação de Poetas e Escritores de Corumbá (APEC), Dignidade, Ação, Saúde, Sexualidade e Cidadania (DASSC), Associação de Mulheres Artesãs Amor Peixe, Instituto de Mulheres Negras do Pantanal (Inegras), Clube dos Amigos do Padre Ernesto e Centro Regional de Experiência Artesanal de Referência Terapêutica Especial (CREARTE). Por outro lado, membros de sua coordenação participaram da fundação das duas primeiras ONGs da fronteira boliviana, no início da década de 2000 --a Asociación de Intervención y Desarrollo Social Dialectum e o Instituto Boliviano-Brasileño de Inversión social (IBBIS)--, além de terem participado da articulação que culminou com a implantação dos serviços da Pastoral da Criança na fronteira da Bolívia com o Brasil.
Os três projetos metodologicamente apoiados pela OCCA, em 2002, que dizem respeito à valorização das raízes culturais, dentro da práxis cidadania-cultura-ambiente --a publicação dos livros Pacu era um peixe que vivia feliz nas águas do Rio Paraguai, de Marlene Mourão, e Corumbá de todas as graças, de Augusto César Proença, e do cd Flor dos aguaçais (inspirado na obra homônima do poeta Rubens de Castro), de Sandro Nemir--, representam um significativo aporte à difusão da produção cultural regional, na perspectiva de contribuir com a efetividade das políticas públicas que possam assegurar a afirmação da identidade cultural da região, tendo clareza do caráter universal da cultura como fator de fomento da cidadania. Esse mesmo compromisso foi renovado quando da oportunização, pela empresa Rio Tinto Brasil, de financiamento de projetos para as entidades locais, em 2006 e 2007: em vez de disputar com apresentação de projeto, a OCCA deu suporte metodológico a entidades locais para a elaboração de projetos, entre as quais o Centro Social Paraguaio-Brasileiro, com o projeto Aranduve Rekávo (de difusão e integração cultural), e o Centro de Promoção Humana e Ambiental (CENPER), com o projeto Hamelin (de iniciação à formação musical).
A OCCA tem como missão institucional o protagonismo cidadão, a valorização do patrimônio cultural, a defesa da diversidade biológica, o compromisso com o desenvolvimento sustentável, a efetividade das políticas públicas que assegurem qualidade de vida e inclusão social, a defesa da democracia e da participação cidadã, e o respeito pela vida e pela dignidade humana, à luz da ética e da solidariedade universal e sob a égide dos Direitos Humanos em todas as dimensões. Nesse sentido, como entidade do terceiro setor, tem como metas principais: o desenvolvimento de programas, projetos e ações pontuais visando a proteção do meio ambiente em áreas urbanas e rurais, a valorização dos bens culturais e a promoção da cidadania; a pugna permanente pela manutenção da qualidade de vida em um ambiente ecologicamente planejado e equilibrado, mediante a racionalização do aproveitamento de seus recursos naturais; a participação e promoção de eventos sobre meio ambiente, cultura e cidadania; a articulação de ações que preconizem o desenvolvimento sustentável para a implementação de políticas públicas, pelo Estado, no âmbito do meio ambiente, cultura e cidadania; a divulgação e o registro de ações e posicionamentos da organização, e o questionamento de toda e qualquer ação que seja considerada agressão ao meio ambiente, ao patrimônio cultural ou às prerrogativas da cidadania, com ênfase para os direitos humanos em todas as suas dimensões.

sexta-feira, 11 de maio de 2007

A tríade cidadania-cultura-ambiente

Atuar no terceiro setor, por si só, tem sido algo bastante difícil nestes tempos em que o deus-mercado teve a sua importância elevada à enésima potência. Imagine-se, então, a atuação no contexto sócio-ambiental, sobretudo numa região em que o exercício do contraditório nada vale, pois o maniqueísmo inquisitorial, sob a batuta de aprendizes de coronéis, é quem dá as cartas, como se ainda vivêssemos sob os caquéticos valores do século 19, auge do liberalismo clássico, mas sem o louvável recurso do direito de resposta.
Mas, e o que isso tudo tem a ver com a tríade cidadania-cultura-ambiente?
Como bem diz a sabedoria popular, a vida é uma grande escola. Eis que a rica experiência de vida de inúmeros antecessores na luta serve, senão de exemplo pelo menos de lição para nós e para os que nos vierem a suceder. Constata-se, portanto, que a vida não é segmentada, e que atuar no eixo sócio-ambiental significa entender e agir de forma articulada nas questões de afirmação de cidadania, do resgate da identidade cultural e da proteção da diversidade biológica do meio em que nos encontramos. Ainda mais se, como em nosso caso, residirmos numa região única como é o Pantanal.
Em outras palavras, desenvolver o protagonismo cidadão da população local como recurso de potencialização da capacidade de intervenção qualificada do cidadão comum representa uma estratégia inovadora e transformadora. Não se trata, apenas, da necessária mas insuficiente responsabilização de nosso cidadão comum para as questões que implicam na mudança de conduta rumo à construção de um novo modelo de desenvolvimento, já previsto na Agenda 21, a qual, aliás, em Mato Grosso do Sul virou alvo de chacota dos bizarros representantes das elites anacrônicas e mais recentemente dos novos empoderados, ex-adeptos da dialética marxista que sucumbiram diante dos atrativos do poder.
E habitante ativo, mobilizado para as legítimas demandas da sua comunidade, corresponde ao perfil de cidadão do século 21, cuja noção de cidadania perpassa questões pontuais ou até ideológicas e se engaja em pleitos que vão para além do cotidiano. Assim, preocupações como ambiente saudável e qualidade de vida, por exemplo, acabam ganhando uma dimensão maior, como políticas públicas intersetoriais cujas metas não se esgotam nos relatórios da burocracia, mas o devido alcance junto aos destinatários, mesmo que não redunde em popularidade ou votos em épocas de eleição.
Mesmo correndo o risco de pecar por redundância, não é demais reiterar que sentir-se comprometido com a causa da conservação dos recursos naturais para as futuras gerações não significa não desejar o progresso e o bem-estar para a sociedade contemporânea. Pelo contrário, lutar por um novo modelo de desenvolvimento é empenhar-se para que os atuais investidores não comprometam a qualidade de vida e de trabalho dos que participam do processo produtivo e dos que vivem em seu entorno, e que, no entanto, não são beneficiários à altura diante dos riscos e prejuízos à saúde e ao meio ambiente em que se encontram.
O que é, mesmo, protagonismo cidadão?
A despeito da inesgotável capacidade inovadora e transformadora de nossa população, nossa história está repleta de episódios em que as amplas camadas sociais desempenham, desde os imemoráveis tempos da colonização ibérica, um papel caudatário –-sequer de coadjuvantes, mas de reles figurantes-–, como que a nação fosse constituída de súditos, não de cidadãos. Em pleno século 21, no generoso contexto oferecido pelas relevantes conquistas do século 20 em nível global, a postura dos habitantes do planeta não pode ser outra que a de protagonistas da própria história, seja do ponto de vista da cidadania, da cultura ou do meio ambiente.
É, pois, a prática articulada e coerente da tríade cidadania-cultura-ambiente que terá como resultado inexorável o protagonismo cidadão preconizado. E, bem entendido, sem dogmas ou receitas preconcebidas, tendo claro que poderemos saber onde iniciamos nosso trajeto, sem, contudo, sabermos onde iremos chegar, porque dependerá tão-somente da capacidade de superação do coletivo em que nos encontrarmos. Isto põe, também, por terra a postura arcaica de nossos antecessores, de que o messianismo –-seja ele de esquerda ou de direita-– está em desuso. E o mais importante: o resultado terá sido da exata estatura de nosso povo.
Ahmad Schabib Hany – fundador da Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente (OCCA) e membro da secretaria-executiva do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD).