domingo, 10 de fevereiro de 2008

Privatização da CESP Paraná, um erro que precisa ser evitado

Hélvio Rech[1]
A decisão do governo paulista de privatizar a CESP Paraná significa a retomada da política que foi responsável pela mais grave crise de energia que o Brasil vivenciou e que culminou com o apagão - uma decisão que muitos acreditavam ser página virada na vida nacional e que surpreendeu diversos setores da sociedade em São Paulo e nos demais estados que integram e compartilham a Bacia do Paraná.
Com 7.456 MW de potência instalada, a CESP Paraná é a maior geradora de energia elétrica de São Paulo. Sua venda é uma operação totalmente inútil para a sociedade, pois dilapida o patrimônio público, provoca desemprego, concentra renda e não acrescenta um único kW novo à capacidade de geração de energia elétrica, num momento que o Brasil precisa construir mais usinas para que o drama do apagão não se repita. Vale lembrar que os compromissos de ampliar em 15% a capacidade de geração dos rios Paranapanema e Tietê, assumidos no edital de venda das usinas desses rios para a iniciativa privada em 1999, jamais foram cumpridos pelas novas controladoras, embora o prazo inicial estabelecido tenha se esgotado em 2007. Como aconteceu no passado, o ônus de um colapso no setor elétrico recairá sobre a população, na forma de racionamento e encargos emergenciais ou temporários.
Para o povo de São Paulo, a venda da CESP Paraná significa também a renúncia à participação do Estado na implementação de uma política ativa para o setor energético e a perda de um instrumento de desenvolvimento regional, como foi a CESP no passado em todas as regiões do estado em que atuou. São Paulo perde a capacidade de influir diretamente sobre o setor mais estratégico, sobre o qual se assenta o desempenho de toda a sua economia.
O governador José Serra pretende alienar 43,31% do capital total da empresa que pertence ao estado e que o torna o maior acionista e controlador da direção da CESP. O valor da transação ainda não foi divulgado e está sendo tratado a sete chaves. Das várias fontes que especulam, aparecem valores entre dois bilhões a seis bilhões de reais, sendo o valor de quatro bilhões de reais, o mais provável. Essa variação é explicada pelos diferentes critérios de avaliação e da modalidade do leilão. A título de informação, o custo para a implantação de novas usinas hidrelétricas gira em torno de US$ 2.000,00 por kW instalado – as usinas do rio Madeira irão custar um pouco mais
[2]. Assim, considerando a capacidade instalada de geração da empresa, as ações controladas pelo governo paulista valem cerca de R$ 11,6 bilhões[3]. Embora a dívida da CESP Paraná seja de R$ 6,5 bilhões, a companhia tem potencial de auferir, indefinidamente, lucros anuais da ordem de R$ 2,0 bilhões.
Conceitualmente, a lógica que orienta a privatização do setor hidrelétrico está na disputa pela apropriação da renda hidráulica, que é a diferença entre o custo de geração das usinas hidráulicas e o preço pago pela venda dessa energia. No caso das usinas do rio Paraná, estas são extremamente atrativas para bancos e demais investidores privados, uma vez que o custo médio de geração de todas as usinas da empresa é da ordem de R$ 40,00 por MWh de energia, contra um preço de venda da energia no mercado livre
[4] em torno de R$ 130,00 o MWh. Isso representa uma renda diferencial (hidráulica) de R$ 90,00 por MWh. Como o parque gerador garante 3.916 MW médios de energia assegurada, essa renda soma R$ 3,52 bilhões anuais. Evidentemente esse é um valor de referência, mas demonstra que a robustez financeira da CESP Paraná é inquestionável: o valor médio da energia gerada pela empresa é pelo menos três vezes superior ao seu custo de geração, o que representa um valor agregado superior ao de qualquer outra atividade produtiva ou aplicação financeira.
Caso se concretize a venda da CESP Paraná, os custos dessa transação recairão sobre o conjunto dos consumidores de energia elétrica do país, pois não existe nenhuma restrição que impeça os futuros controladores da empresa de transferir a energia destinada para o mercado cativo e regulado para o mercado livre, em que poderão auferir lucros fabulosos. Com isso, o mercado cativo será obrigado a comprar energia das novas usinas – mais cara –, o que resultará em novos aumentos de tarifa numa energia que hoje já figura entre as mais caras do mundo, embora fosse uma das mais baratas antes do início das privatizações no setor elétrico. A venda pressionará os preços à alta, vez que os compradores têm pressa de recuperar o capital investido. E o sobrepreço, uma espécie de “imposto compulsório da energia elétrica”, uma vez que todo o valor disposto para arrematar a empresa no leilão será recuperado pelos novos controladores via tarifa, e que incide não apenas sobre consumidores domésticos, mas sobre os custos de toda a produção industrial, elevando o custo Brasil, pressionando a inflação e impactando negativamente toda a economia.
Vale destacar a estranha coincidência de que a proposta de privatização da CESP Paraná, em nenhum momento antes ventilada pelo governo Serra, seja colocada exatamente num momento pré-eleitoral, quando os partidos políticos estão à caça de recursos para financiar suas campanhas.
Se prevalecer a vontade dos interessados na venda da CESP Paraná, em detrimento dos interesses do conjunto dos usuários dos serviços públicos de energia elétrica, os estados integrantes da bacia do Paraná perderão a possibilidade de participar do debate sobre o papel que a CESP Paraná deveria desempenhar no desenvolvimento regional. Durante décadas, a CESP impulsionou – e continua impulsionando – o desenvolvimento do estado de São Paulo, não só fornecendo energia para suas indústrias, como também por suas atividades de pesquisa e desenvolvimento e pela atuação de seu quadro de técnicos e engenheiros altamente capacitados, que foram envolvidos em projetos de desenvolvimento do lado paulista das regiões interioranas das bacias do Tietê e do Paranapanema. Exemplo disso são as regiões da Alta Sorocabana e Araçatuba, entre outros.
Estes benefícios não foram sentidos nos lados sul-mato-grossenses e paranaenses da bacia, que tiveram parte de seus territórios inundados pelos reservatórios das usinas, mas esta realidade deveria mudar, vez que estes estados, pelo princípio dos entes federados que compartilham ambientes e recursos comuns, têm o direito de discutir o futuro da CESP Paraná e apontar cominhos que diminuam as diferenças regionais. Este sonho pode estar mais próximo que nunca. As possibilidades de esses estados terem uma participação mais ativa na gestão dos recursos da bacia do Paraná – e na apropriação dos benefícios proporcionados pela exploração do potencial hidráulico do rio Paraná – aumentam com a proximidade do fim do período das concessões das usinas do rio Paraná (UHE Porto Primavera, 2008; UHE Jupiá, 2015 e UHE Ilha Solteira, 2015). Nunca é tarde lembrar que decisões importantes e estratégicas, que atingem mais de uma geração não podem ser tomadas pelos governantes de plantão, sem um amplo debate com a sociedade.
Portanto, é o momento de corrigir uma distorção histórica e reafirmar que a energia gerada no rio Paraná deve atender ao serviço público e não ser colocada a serviço das empresas comercializadoras de energia, que buscam apenas especular com os preços para auferir lucros cada vez maiores, em detrimento dos interesses dos usuários da energia. A magnitude da energia gerada pelas usinas do rio Paraná a preços relativamente baixos – uma vez que os investimentos iniciais já estão praticamente amortizados – permite que elas funcionem como um colchão, capaz de conter a alta dos preços que tende a ocorrer a partir da entrada em operação das novas usinas que, inevitavelmente produzirão energia a preços mais caros, seja pela elevação dos custos dos insumos, materiais e equipamentos, seja pela necessidade de recuperar os investimentos feitos para sua construção.
Além disso, não podemos esquecer que a CESP desenvolveu, ao longo de décadas, uma expertise sem igual na área da geração de energia hidrelétrica (engenharia, projetos, planejamento e meio ambiente). Construída com recursos públicos, essa expertise tem de ser colocada a serviço do desenvolvimento energético nacional, da exploração de novos potenciais com a necessária proteção do meio ambiente, e também da construção da integração energética latino-americana, em cooperação com demais países como Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Argentina e Uruguai.
Em suma, a CESP Paraná pode e deve desempenhar um papel mais ativo no desenvolvimento regional, particularmente nos estados de Mato Grosso do Sul e Paraná, seja pela participação desses estados nos ganhos provenientes da geração de eletricidade, seja pela colocação da capacidade técnica da empresa a serviço da redução das desigualdades regionais, que ainda são fortes especialmente nas regiões do Pontal do Paranapanema, em São Paulo, no Noroeste do Paraná e no Sul e Sudeste de Mato Grosso do Sul.
A CESP Paraná, com sua experiência, capacidade técnica e recursos financeiros, tem muito a contribuir para a exploração dos recursos do rio Paraná considerando seus múltiplos usos – como desenvolvimento do turismo, navegação, agricultura e irrigação –, assim como para garantir a preservação efetiva de áreas de proteção ambiental, como a APA das Ilhas e Várzeas do Rio Paraná. Nessa região está única área remanescente protegida e que abriga ecossistemas únicos (como o “varjão do rio Paraná”), cuja proteção deve ser compatibilizada com a busca de alternativas de renda e desenvolvimento social para a população local, numa perspectiva que integre desenvolvimento regional e proteção ambiental.
[1] Mestre e doutorando em energia pela USP. Especialista em regulação de serviços públicos concedidos (FIPE-USP/Unicamp/EFEI). Foi diretor da APA das Ilhas e Várzeas do rio Paraná – IBAMA. E.mail: hrech@usp.br. Atualmente é o coordenador-técnico da OCCA Pantanal.
[2] Utilizar como critério os custos próximos ao das usinas do rio Madeira faz sentido, uma vez que esse custo tende ser a regra, dado que os potenciais ainda não explorados têm características semelhantes, como a distância dos centros consumidores. Considerando a capacidade instalada de 7.456 MW, o valor da CESP Paraná seria de R$ 26,8 bilhões.
[3] Levando-se em conta o dólar cotado em R$ 1,80.
[4] O preço da energia no mercado livre tem apresentado grande variação: Para o subsistema Sudeste/Centro-Oeste, o preço na semana de 26 de janeiro a 1º fevereiro, foi de R$ 550,28; na semana seguinte, R$ 255,91. Com as chuvas dos últimos dias, caiu para R$ 150,00. Já no leilão da Usina Hidrelétrica do Rio Madeira, em 10 de dezembro de 2007, foi ofertada a R$ 78,90 MWh pelo consórcio vencedor. No entanto, analistas projetam um valor estável de R$ 130,00 em 2010-2012.

Um comentário:

BETO BUENNO disse...

Caro Hélvio,
Parabéns pela oportuna discussão sobre a escandalosa privatização do setor elétrico, realizado, aliás, no tempo do medíocre intelectual e nada ético FHC (aquele mesmo que, nos tempos da ditadura, recebeu uma dinheirama da CIA como "ajuda de custos").
Num país como o nosso, que padece de vários males (dos quais o pior, em minha modesta opinião, é o cinismo de suas elites), é louvável sua coragem para, no seio da academia mofanda e omissa, trazer à luz da opinião pública uma digna denúncia como essa.
Continue assim, com coragem e determinação, para preparar uma nação mais generosa e justa com as futuras gerações.
Só mais uma questão: por que, até o presente momento, nenhum meio de comunicação repercutiu ou cobriu tal episódio? Talvez para não abalar as bolsas, coitadas, que estão muito nervosas com o blefe do setor imobiliário dos EUA...
Roberto Buenno (betobuenno@gmail.com)